Com calma, subo as escadas do Templo, sob um vento forte que carrega as areias do destino de um lado para o outro. Ao cruzar a linha dos obeliscos, o vento pára. Sinto o ar parado e quente, mofado, como um velho baú cheio de coisas antigas.
Agora sei o caminho a fazer; atravesso a porta principal, e em direção reta, há uma parede enorme, com duas passagens laterais, uma de cada lado. Hora de escolher; sei que não há chance para erros.
Fecho os olhos, e continuo andando. Vou deixar que meus sentidos me levem. Sigo reto, e sem perceber, atravesso a parede, e quando abro os olhos, estou na sala do trono do Guardião.
A meia distancia o vejo, com um capuz na cabeça abaixada, sentado num trono de pedras gastas pelo tempo. Ele não se mexe.
Vou em direção à ele. Já bem perto, cerca de um metro a minha frente, ele levanta a cabeça, mas não vejo seu rosto; está escuro por debaixo do capuz. Ele então se levanta, e dá um passo em minha direção.
A visão é assustadora; mas me lembro dele; já passei por aqui outras vezes. É quase um esqueleto, corroído pelo tempo, rosto fino e deformado, com um olhar totalmente vazio; olhos pretos, vitrificados, que refletem o que olha para eles.
Apenas uma pergunta ele faz; “O que busca, alma perdida? “
Já sei como proceder; aqui o respeito é tudo, afinal ele é um anjo, na busca da redenção. Ele nos ajuda, e nós o ajudamos.
Fiz uma pausa para lembrar de tudo, e comecei: “ Anjo decaído nas trevas, que guarda as portas do Inferno para que nada entre, nem saia, sem o consentimento do Pai, humildemente venho a vós buscar a chave da porta psíquica que leva ao mundo real, como deixei. Por respeito aos teus poderes, apenas te peço, e respeito tua decisão”.
Continuando com aquele olhar vítreo sobre mim, ele responde “Porque queres voltar ao início de tudo, se podes escolher ficar aqui, ou pedir que eu te mande de volta de onde veio, onde deixaste tua amada ? “
Ele sabia muito bem o que perguntava. E eu sabia muito bem o que responder.
“Quero voltar porque errei; não estava preparado para o reencontro de nossas almas, e perdi o momento da nossa fusão eterna. Preciso recomeçar meu caminho, do zero absoluto, para retomar a busca das luzes perdidas”.
Nesse momento, ele estendeu os dois braços, e tudo escureceu dentro do templo. Eu só via os seus olhos, devido ao brilho vítreo que refletia minha luz, e mais ou menos um metro ao redor. Senti um frio imenso, que tomou conta da minha alma; eu nunca tinha experimentado nada parecido.Minha alma congelou, literalmente, e vi em minha frente uma das coisas mais tristes de toda minha vida.
O Guardião, até então era assim que eu conhecia, teve seu rosto totalmente desfigurado; o que vi foi algo que acho que não dá pra explicar detalhadamente em palavras; acho que só na mais sombria e fria imaginação ou meditação da alma, se consegue ver as coisas assim. Eu vi a face da Morte, como ela é.
Eu vi a face do Medo, da Perseguição, do Egoísmo, do Egocentrismo, da Avareza, da Angústia, das Doenças, da Dor, da Miséria, da falta de fé, da ausência de Esperança, da destruição, da psicose, da depressão profunda da alma, da noite escura da Alma.
Tudo foi se moldando aos poucos, se transformando, mas eu não via apenas um rosto, era tudo, o local, o templo, tudo se transformou na Morte. Agora já não chamo mais de Guardião... Aquilo vinha de encontro a mim, parecia que iria rasgar meu corpo, e entrar em minha alma, e senti muita dor, como nunca tinha sentido antes. E senti cada uma das sensações que descrevi acima. Senti o Medo de tudo, a Perseguição dos injustiçados, o Egoísmo daqueles que acham que estão acima de tudo, o Egocentrismo de achar que sou o centro do universo, a Avareza em afastar os que me pedem o que tenho de sobra, a Angústia de se sentir abandonado por todos, inclusive pelo Pai, as Doenças que corroem o corpo e os decompõem aos poucos, a Dor de uma espada atravessando meu peito, a Miséria em não ter nada, e pedir e ser ignorado, senti a falta de fé e me vi num labirinto sem sentido algum pois tanto faz sair ou ficar pois não há nada lá fora, a falta de Esperança num amanhã melhor e mais justo, a destruição de tudo que construí com amor e dedicação por aqueles que subjulgam os sentimentos, a psicose que transforma os heróis em matadores de aluguel ou assassinos em série, a depressão profunda em minha alma que me jogou num precipício onde só havia queda, eterna. Senti a noite escura da Alma, em seu aspecto mais deprimente, onde não se consegue a libertação dos sentimentos e dos sentidos, e se perde no escuro da mata.
Praticamente destruído por dentro, me senti um “nada”. Quando percebi, estava já caído no chão, perante a face da Morte. Poderia ser o meu fim.
Mas acho que estou entendendo agora. Levantei-me, e olhando fixamente para os olhos vítreos daquela forma decaída, me inflamei com a única chama que ainda havia dentro de mim, a chama da Alma Mundi, e fortemente falei “ Agora entendo porque estás aqui ainda, Alma perdida. Tu te corrompestes pelo tempo, subjulgou seu adversário, e foi dominado pelos poderes inferiores. Não se libertou dos sentidos do mundo real, e ainda precisa das sensações do corpo para sentir prazer. Por isso estás condenada a continuar aqui, até que reconheça a redenção. Em nome do Pai que nos criou, e da Legião de Anjos que sigo, te ordeno que me entregues a chave da porta psíquica que me leva ao mundo real, tal como deixei “.
O ódio escorria pela sua face, mas a Morte caiu de joelhos frente a seu próprio trono, e surgiu em sua frente, no chão, um pentagrama dourado, que brilhava como um cristal translúcido. Eu sabia que era a chave.
Apenas peguei-a, e saí do templo, pois aquela alma, que continua se chamando Morte, ainda tem um longo caminho pela frente, sentado ali, naquele trono corroído. Enquanto ele quiser segurar ali outras almas, não conseguirá se libertar. Mas quanto a isto, nada posso fazer; é um karma próprio que ele criou.
Desci pelas escadas, e, olhando para trás, vi que não havia mais templo, apenas uma parede enorme, que não se via onde começava nem onde terminava, e bem à minha frente, em baixo relevo, um pentagrama desenhado na parede. Era ali a porta.
Coloquei o pentagrama sob o desenho, e o muro se desfez num raio de brilho intenso que me cegou.
Terminei o caminho, pensei. Estou de volta ao mundo real na busca das luzes perdidas.
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